Os artefatos sempre foram instrumentos importantes da reconstrução histórica, pois relatam os hábitos e o estágio de desenvolvimento tecnológico e cultural de um determinado povo, permitindo inferências em vários campos. O design de produtos, portanto, passou a ser nos tempos modernos a chave para muitas dessas inferências, estando estreitamente relacionado às mudanças sociais e culturais, sendo um reflexo do contexto no qual está inserido. Não se pode analisá-lo sobre qualquer ponto de vista dissociando-o deste contexto dinâmico.
Desde os anos 1980, é crescente a preocupação das pessoas com as alterações no meio ambiente e suas conseqüências que parecem apontar para um problema ainda maior: a insustentabilidade do estilo de vida do homem contemporâneo. O design sustentável se apresenta como um importante agente destas transformações, visto que a produção de artefatos pela indústria é norteada por seus princípios.
Através do design sustentável pode-se propor uma série de medidas condizentes com esta nova demanda social e cultural. É de se esperar que os produtos resultantes desta ordem social emergente apresentem características estruturais e estéticas próprias, que reflitam este novo momento.
Ao conduzir uma análise do design de mobiliário ao longo da história procura-se rastrear as mudanças influenciadas pela sustentabilidade neste setor desde os anos 1980 até a atualidade. A compreensão destas mudanças elucidará um caminho já adotado pela indústria moveleira em todo o mundo: a adoção de critérios de sustentabilidade no projeto de móveis. No Brasil, estas mudanças podem ser percebidas através das mostras de mobiliário sustentável que já acontecem regularmente.
Além disso, pólos moveleiros consagrados como o situado no Planalto Norte de Santa Catarina lançam produtos intitulados “biomóveis”, produzidos em mais de vinte empresas da região. Faz-se necessário, portanto, investigar a origem da inclusão da sustentabilidade no vocabulário do mobiliário para vislumbrar possibilidades futuras.
Ainda no século XIII, o teólogo alemão Meister Eckhart freqüentemente refere-se à Terra como um recurso frágil e sensível afetado pela ação do homem, mas apenas após a Revolução Industrial tornou-se evidente que a extração de matéria-prima e a produção desenfreada traria conseqüências danosas à sociedade. Inicialmente, havia uma carência de artefatos e uma necessidade de atender ao mercado consumidor em formação. O sistema de fabricação produzia em enormes quantidades e a um custo que diminuía rapidamente, passando a não depender mais da demanda existente e gerando o seu próprio mercado. Com a evolução tecnológica, observava-se uma maior variedade dos produtos que passaram a se diferenciar muitas vezes apenas por fatores estéticos. Neste início de industrialização, a figura do designer correspondia a do desenhista técnico, fechado em seu escritório e sem contato com a linha de produção.
É importante ressaltar a maneira predatória como o desenvolvimento pautado na indústria se deu. Não é o processo industrial em si que é danoso e sim a maneira como ele se deu em nossa sociedade. As formigas superam, juntas, a biomassa de humanos no planeta e vêm agindo de modo industrial por milhões de anos, sendo extremamente produtivas sem, no entanto, perturbar e colocar em declínio quase todos os ecossistemas da Terra como fizeram os seres humanos. Os autores arrematam seu pensamento afirmando que a Natureza não tem um problema de design, as pessoas têm.
Encarar a Natureza como um desafio a ser vencido, como um inimigo a ser subjugado, era a tônica do pensamento desenvolvimentista do século XIX. O movimento Arts & Crafts foi o primeiro a associar a degradação ambiental aos novos meios de produção, oferecendo uma alternativa ao sistema vigente, de modo que a produção continuasse aumentando, mas com um baixo impacto social e ambiental. Seu idealizador, William Morris, possuía uma empresa de mobiliário que visava o resgate da qualidade dos produtos e da vida do trabalhador, pois assim eles “poderiam novamente encontrar alegria no trabalho, e o ambiente feito pelo homem – que havia decaído nas cidades industriais com cortiços asquerosos e deprimentes, cheios de bens manufaturados de gosto vulgar – poderia ser revitalizado.” . Sua atuação, porém, ficou restrita a uma pequena camada da sociedade, já que seus móveis atingiam preços altos em comparação ao produto industrializado.
De estética austera, primando pela funcionalidade e qualidade dos materiais, os móveis da Morris & Co não dissimulavam o processo produtivo, evidenciando, por exemplo, os encaixes e os veios da madeira.
Apesar disso, estava lançado o questionamento que conduziu aos Movimentos Modernistas em toda a Europa. A virada do século foi pontuada por tentativas de encontrar um estilo que refletisse esta nova época, abandonando as referências do passado.
O Art Nouveau buscou conciliar a atividade industrial e o apuro estético. Seu mobiliário integravase ao ambiente para o qual fora concebido e inspirava-se nas linhas fluidas e nas formas orgânicas da Natureza, obtidas através do maquinário.
O Estilo Glasgow, em contrapartida, apresentava linhas retas com influências orientais, resultando em uma estética bastante distinta do art nouveau. A Primeira Guerra Mundial pôs fim a estas iniciativas e, no período subseqüente a tentativa de esquecer os horrores infligidos a população européia acarretou uma fuga por meio da glamorização e do luxo, valorizando a visão hollywoodiana da vida.
O Art Déco se delineava pelos materiais reflexivos e sofisticados, pelas formas geométricas advindas do Cubismo. Em paralelo, em 1919 é fundada a Bauhaus, escola que tinha como princípio a união dos momentos artístico-criativo e técnico-material da concepção dos produtos industriais.
A insistência no funcionalismo e na racionalidade acabou gerando produtos como a cadeira cantilever de Marcel Breuer, que contemplava critérios como racionalização do uso de material, padronização de componentes, facilidade de montagem e desmontagem e durabilidade.
Após a Segunda Guerra Mundial, a carência de matérias-primas e fontes energéticas norteou a produção da indústria européia, que elegeu como máxima a frase “Menos é Mais” .
Na contramão desta linguagem econômica e racional, algumas empresas já administravam o ciclo de vida de seus produtos de modo a torná-lo mais curto.
Nos anos 50, Vance Packard cunhou o termo “obsolescência programada” em seu livro The Waste Makers, designando produtos que eram projetados para serem descartados após um período determinado de tempo.
Há ainda a obsolescência percebida, em que produtos que conservam suas características funcionais são descartados por ter suas características estéticas e simbólicas ultrapassadas.
Nesta época, já se sabia que o homem retirava os recursos naturais em uma velocidade superior a capacidade de reconstituição da Natureza e que a sociedade caminhava para uma produção desenfreada de lixo que não conseguiria administrar.
Consciência
Nos anos 1960, o movimento hippie questiona o consumismo e estimula o “faça você mesmo” em diversos campos como a moda e a decoração. No final desta década, com a conquista do espaço e chegada à Lua, o homem passou a se conscientizar da finitude do mundo em que vive, de seus limites. O livro de Rachel Carson, Primavera Silenciosa, em 1962 já alertava para as conseqüências da ação predatória do homem na natureza.
No âmbito do mobiliário, cores e formas inusitadas saltavam aos olhos no estilo Pop, amparado pelo desenvolvimento de materiais como a fibra de vidro e diversos tipos de plástico. O humor e a ironia se materializam em formas que lembram objetos do cotidiano e explodem em cores saturadas. Surgem também produtos de designers escandinavos que se tornariam posteriormente ícones do design de móveis. As mesas e cadeiras Tulipa de Eero Saarinen em alumínio fundido e fibra de vidro, a cadeira formiga e a série 7 de Arne Jacobsen e a Globe Chair de Eero Aarnio são apenas alguns exemplos.
Com a chegada dos anos 1970, os órgãos internacionais reconhecem a existência de um problema ambiental e os pioneiros da sustentabilidade começaram a escrever sobre o assunto. Victor Papaneck publica em 1971 o livro Design for the real world destacando a responsabilidade do designer com o meio ambiente, mesmo ano em que um grupo de cientistas do MIT, o Clube de Roma, publica Limits to Growth, alertando a respeito das conseqüências do “american way of life” e da explosão demográfica dos países menos desenvolvidos. Em 1972 ocorre a primeira Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, que posteriormente deu origem ao Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).
Nos anos 1970 “o consumo humano de recursos naturais começa a ultrapassar as capacidades biológicas da Terra”, o que culmina numa série de problemas como a Crise do Petróleo em 1973. No mesmo ano, Ignacy Sachs lança o conceito de ecodesenvolvimento. Para ele, seis seriam os caminhos de desenvolvimento: satisfação das necessidades básicas; solidariedade com as gerações futuras; participação da população envolvida; preservação dos recursos naturais e do meio ambiente; elaboração de um sistema social que garanta emprego, segurança social e respeito a outras culturas; programas de educação.
Em 1983 surge a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CMMAD) que publica, em 1987 o relatório “Nosso Futuro Comum” que abriga a definição clássica de Desenvolvimento Sustentável. Entretanto, nos anos 1980 e 1990, os esforços em busca desta nova sociedade sustentável focaram-se em políticas end-of-pipe, ou seja, ações para conter os efeitos nocivos ao meio ambiente gerados pelas indústrias. Não há mudanças significativas nos produtos ou nos processos: se o problema era a fumaça gerada pelas chaminés, por exemplo, colocou-se um filtro nas mesmas, sem qualquer questionamento a respeito da necessidade de produzir aquela fumaça.
O problema, portanto, persistiu. Apenas alguns poucos designers conseguiram aliar a estética pós-modernista aos materiais reciclados com baixo impacto para o meio ambiente, como Ron Arad e suas poltronas feitas a partir de assentos de carros e as cadeiras orgânicas de Tom Dixon.
Nos anos 1990 o aparecimento de produtos rotulados como “produtos verdes”, alavancou o conceito de ecodesign, mesmo que sua definição não fosse clara. Acontece a ECO 92, realizada no Rio de Janeiro que publica a Agenda 21, documento que fornecia 27 princípios que determinavam os direitos e as responsabilidades dos estados na constituição de um mundo sustentável. Também em 1992 foi criado o Ministério do Meio Ambiente do Brasil e a Divisão para Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas, ONU. No ano seguinte, surge um conjunto de normas desenvolvidas pela Organização Internacional para Normatização (ISO) com foco no meio ambiente. São normas que abordam a questão ambiental a partir de oito áreas: o sistema de gestão ambiental, as auditorias ambientais, a avaliação de desempenho ambiental, a rotulagem ambiental, os aspectos ambientais nas normas de produtos e a análise do ciclo de vida dos produtos, a comunicação ambiental e as mudanças climáticas.
Em decorrência desta configuração social e política uma nova leva de produtos surgiu a partir os anos 1990, mais amadurecida e incorporando ações voltadas para a tecnologia e para a produção limpa. Propostas mais concretas conduziram a um impacto direto na configuração dos produtos, com a utilização de novos materiais, minimização dos recursos utilizados e, em alguns casos, grandes mudanças no processo produtivo. Produtos como a Rag Chair e a Chest of Drawers de Tejo Remy revolucionaram o modo de configuração dos objetos, desafiando forma, materiais e processo construtivo. A obsessão industrial pela padronização das peças é claramente questionada pela diversidade de formas e cores das peças criadas pelo designer.
Contemporaneidade
As conseqüências da degradação ambiental desencadearam um processo de mudança na percepção da realidade pelos homens. Surgiram indagações sobre a atitude do homem em relação ao meio ambiente e aos seus iguais, seus valores foram questionados e imperou “a necessidade de redefinição dos códigos normativos, de mudança das práticas humanas correntes.
O desenvolvimento de novos produtos que incorporam critérios sustentáveis tem como exemplo a cadeira chairfix, de Ben Wilson, 2003, produzida a partir de um único material, considerando o aproveitamento de uma lâmina de mdf, com montagem simples e baseada em encaixes.
Seu transporte é facilitado pela leveza do material utilizado e a alta capacidade de compactação da embalagem. O raciocínio para concepção deste produto, entretanto, parece bastante semelhante ao da cadeira São Paulo, de Carlos Motta, criada em 1982.
Embora possua revestimento melamínico em seu assento, a São Paulo contempla os mesmos conceitos de aproveitamento de material, redução do número de peças, redução de embalagem, facilidade na montagem e simplicidade da Chairfix, superando-a no apuro estético e na durabilidade.
Estratégia diversa foi adotada pelo coletivo francês 5.5 Designers na série Réanim (2003) ao dotar de “próteses” fluorescentes peças de mobiliário que iriam para o lixo por estarem quebradas ou desgastadas, driblando assim o descarte das mesmas, prolongando seu tempo de uso. O mesmo princípio foi adotado em projeto ainda mais recente, o Cuisine d’objets (2009), que oferece “receitas” para reaproveitar velhos utensílios de cozinha e transformá-los em novos objetos, como o tabouret façon tatin, banco que reutiliza uma forma de torta como assento e cabos de vassoura como pernas.
Este tipo de intervenção parece incitar todos a brincarem de designers, recriando objetos que já lhes pertenciam, fazendo parte de um novo raciocínio de uma cultura sustentável. Será este o caminho para uma sociedade sustentável? O impacto imediato recairá sobre o consumo, que tenderá a diminuir tendo em vista a ampliação da vida útil dos objetos. Que conseqüências esse novo ritmo de consumo trará para a sociedade?
Outra possibilidade foi ainda apontada pelo grupo através do projeto Mobilier à jardiner (2006) que estimula um uso e uma função inusitados de uma cadeira ao fundi-la com um vaso de plantas.
Percebe-se que as possibilidades de intervenção são diversas e que os resultados formais provenientes da inclusão da sustentabilidade são ainda mais diversos, assim como os processos produtivos que os originam. Cabe aos designers o questionamento acerca do impacto social e econômico de suas idéias.
Parece difícil antever o que está por vir quando os designers encaram o futuro com um olhar muito atento ao passado, resgatando práticas artesanais e recriando objetos até então considerados anacrônicos.
Estas mudanças no processo de concepção de produtos vêm acompanhadas por um crescente interesse por parte das empresas de todo o mundo em desenvolver produtos orientados para o meio ambiente, existindo inclusive uma estratégia de marketing e de colocação da empresa no mercado chamada Greenbranding.
As empresas passaram a vislumbrar a sustentabilidade como uma oportunidade de negócio e não como uma dolorosa fonte de gastos e modificações. A ecoconcepção seria a ferramenta ideal para atingir este patamar de desenvolvimento.
A legislação vem se tornando cada vez mais rígida ao longo dos anos no que concerne aos danos causados por diversos setores ao meio ambiente. O Brasil, como país emergente, tem procurado se adequar a esta demanda para atender ao exigente mercado externo.
O design ocupa, assim, uma posição estratégica nesta fase de adequação e mudança, apresentando-se como uma ferramenta fundamental para a configuração da cultura material dentro de uma nova sociedade pautada na sustentabilidade.
Faz necessário, para tanto, evidenciar os critérios de sustentabilidade, investigar a fundo o impacto destes critérios na configuração dos produtos já que ficou evidente após o levantamento histórico deste artigo que mudanças ocorreram de fato no âmbito do design de móveis à medida que os conceitos acerca de sustentabilidade foram avançando e integrando o processo de design. Além disso, saber “ler” os móveis desenvolvidos atualmente pode nos fornecer uma boa medida do quão sustentável nossa sociedade já é.
Autores
Rodrigues, Lia; Mestranda; Universidade Federal de Pernambuco, UFPECastillo, Leonardo; PhD; Universidade Federal de Pernambuco, UFPE |