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Há menos de três meses entrou em vigor a Lei 14.876/2024, que modificou a descrição do Código 20 do Anexo VIII da Lei 6.938/1981 – Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) para excluir a silvicultura do rol de atividades potencialmente poluidoras e/ou utilizadoras de recursos ambientais [1]. Com origem no Projeto de Lei 1.366/2022, o intuito da norma é dispensar a necessidade de licenciamento ambiental para o plantio de florestas com espécies não nativas para extração de celulose, a exemplo de pinus e eucaliptos, além de isentar o setor da exigência de pagamento da Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental (TFCA).
Não é recente a discussão sobre a possibilidade de dispensa da exigência de licenciamento ambiental e de outros mecanismos de proteção ecológica em se tratando de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras, e a prova disso é que já se construiu uma robusta discussão doutrinária e jurisprudencial a respeito do assunto. Em vista disso, o presente artigo tem por objetivo analisar os aspectos jurídicos e práticos da lei citada, que procurou eximir a silvicultura dos instrumentos de controle ambiental da PNMA.
Primeiramente, há que se estudar a Lei 14.876/2024 a partir de uma perspectiva constitucional. A função de controlar as atividades efetiva ou potencialmente poluidoras está expressamente estabelecida pelo inciso V do §1º do artigo 225 da Constituição de 1988, que reza que, para assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente equilibrado, incumbe ao poder público “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”. Dessa forma, por possuir esteio constitucional direto, o licenciamento ambiental não poderia ser excluído por uma lei que guarda evidente descompasso com o caput do artigo 225 da Constituição, que alçou o meio ambiente à condição de direito fundamental – a não ser que essa norma substituísse o licenciamento por um outro instrumento efetivamente capaz de assegurar o controle ambiental com igual ou maior qualidade, o que, infelizmente, não foi o caso.
Desrespeito à isonomia e à separação dos poderes
Por outro lado, não obstante a indiscutível importância econômica da silvicultura para o país, também não se justifica o privilégio legal para esse único segmento empresarial, uma vez que outras atividades igualmente relevantes e até causadoras de impactos ambientais menores continuam sujeitos ao mecanismo. Não parece fazer sentido exigir a licença ambiental de pequenos estabelecimentos comerciais urbanos ou agrários, ao passo que propriedades rurais às vezes com hectares de plantação de florestas exóticas estariam desobrigadas disso. Além de atentar contra o princípio da isonomia, a lei não considerou o inciso VI do artigo 170 da Constituição, que classificou a defesa do meio ambiente como princípio da ordem econômica “inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação”.
Também é possível constatar o desrespeito ao princípio da separação dos poderes, pois, nesse caso, o Congresso Nacional interferiu na atuação típica do órgão administrativo de meio ambiente ao tentar impor critérios e procedimentos. Incumbe ao órgão responsável pelo licenciamento ambiental identificar o caráter poluidor da atividade, o que deve ser feito a partir de um olhar técnico e sempre levando em consideração os aspectos territoriais específicos do empreendimento proposto em cada caso concreto. Com efeito, cabe apenas ao Poder Executivo definição do tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental, o que deverá ser feito a partir de um juízo técnico de valor, e não político, como foi o caso. Afinal, ainda que em tese, é possível ocorrer desmatamento, diminuição da segurança hídrica, mudança no uso do solo, perda de biodiversidade, uso de agrotóxicos etc.
Prevenção, precaução ficam comprometidas
Interessante observar o efeito reflexo da dispensa da exigência da licença ambiental sobre os demais instrumentos da PNMA. No Brasil, a avaliação de impactos ambientais costuma acontecer apenas no âmbito do licenciamento ambiental, de forma que com essa lei os impactos ambientais da atividade sequer poderão ser conhecidos, o que atenta contra os princípios da prevenção e da precaução. Até mesmo a fiscalização deverá ser comprometida, pois em regra o órgão ambiental confere in locu o empreendimento ou sua localização quando do requerimento da licença e da sua renovação, perdendo, assim, regularidade e sistematicidade. Vale lembrar que a Lei Complementar 140/2011, ao vincular a competência fiscalizatória prioritária à definição do órgão licenciador, deixa claro que é a expertise gerada pelo licenciamento que garante a melhor qualidade da fiscalização [2]. Outro efeito é que a atividade não poderá constar no Cadastro Técnico Federal de Atividades Potencialmente Poluidoras e/ou Utilizadoras de Recursos Ambientais (CTF/APP), previsto na PNMA, sendo, assim, inegável o efeito de distanciamento da silvicultura em relação aos mecanismos de controle ambiental.
Exceção à regra
Por falar em Lei Complementar 140/2011, a única hipótese de inexigência prévia são os casos previstos no preparo e emprego das Forças Armadas, consoante prevê a alínea f do inciso XIV do artigo 7º – hipótese essa que ainda é discutível haja vista o dispositivo constitucional citado. As demais “atividades ou empreendimentos utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental” estão sujeitas ao licenciamento ambiental, pois assim dispõem o inciso I do artigo 2º dessa lei e o caput do artigo 10 da PNMA. Tais dispositivos foram considerados constitucionais pelo STF na ADI 4.757/DF, que consagrou a constitucionalidade da lei complementar citada [3].
Entendimento do STF
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é unânime ao considerar inconstitucional a dispensa do licenciamento ambiental de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras [4], tendo também já atestado que a silvicultura pode ser enquadrada como tal [5]. Destarte, no que diz respeito à dispensa prévia da exigência de licenciamento ambiental, não restam dúvidas acerca da inconstitucionalidade da Lei 14.876/2024, uma vez que desrespeita o inciso V do §1º do artigo 225 da Constituição, isso para não mencionar toda a jurisprudência contrária do STF.
Quanto à modificação do Código 20 do Anexo VIII da PNMA para excluir a silvicultura do rol de empreendimentos potencialmente poluidores e/ou utilizadores de recursos ambientais, não parece que a Lei 14.876/2024 seja inconstitucional, pois, nesse caso, o legislador adotou um enquadramento com efeitos tributários somente. Isso indica que, a partir da publicação dessa norma, a silvicultura ficou desobrigada da exigência de pagamento da TFCA, sendo esse, portanto, o grande efeito concreto da nova norma, dado que a atividade foi expressamente excluída do CTF/APP. Previsto no inciso I do artigo 150 da Constituição, o princípio da legalidade tributária dispõe que nenhuma modalidade de tributo pode ser instituída, cobrada ou aumentada sem previsão em lei.
Em vista disso, a Lei 14.876/2024 não pode ter o condão de dispensar a exigência da licença ambiental para as atividades efetiva ou potencialmente poluidoras, uma vez que esse entendimento é inconstitucional. Entretanto, ao dispor expressamente que a silvicultura não integra mais o CTF/APP, a norma tem o efeito prático de isentar o setor da exigência de pagamento TFCA, operando, assim, uma desoneração de ordem tributária.
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[1] A redação anterior desse dispositivo, que tinha sido dada pela Lei 11.105/2005, era a seguinte: “Silvicultura; exploração econômica da madeira ou lenha e subprodutos florestais; importação ou exportação da fauna e flora nativas brasileiras; atividade de criação e exploração econômica de fauna exótica e de fauna silvestre; utilização do patrimônio genético natural; exploração de recursos aquáticos vivos; introdução de espécies exóticas, exceto para melhoramento genético vegetal e uso na agricultura; introdução de espécies geneticamente modificadas previamente identificadas pela CTNBio como potencialmente causadoras de significativa degradação do meio ambiente; uso da diversidade biológica pela biotecnologia em atividades previamente identificadas pela CTNBio como potencialmente causadoras de significativa degradação do meio ambiente”. Agora, com a Lei 14.876/2024, passou a ser a seguinte: “exploração econômica da madeira ou lenha e subprodutos florestais nativos; importação ou exportação da fauna e flora nativas brasileiras; atividade de criação e exploração econômica de fauna silvestre; exploração econômica de fauna exótica; utilização do patrimônio genético natural; exploração de recursos aquáticos vivos; introdução de espécies exóticas, exceto para melhoramento genético vegetal e uso na agricultura; introdução de espécies geneticamente modificadas previamente identificadas pela CTNBio como potencialmente causadoras de significativa degradação do meio ambiente; uso da diversidade biológica pela biotecnologia em atividades previamente identificadas pela CTNBio como potencialmente causadoras de significativa degradação do meio ambiente”.
[2] A Lei Complementar n. 140/2011, nos termos dos incisos III, VI e VII do caput e do parágrafo único do art. 23 da Constituição Federal, regulamenta a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, à proteção do meio ambiente, ao combate à poluição em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora. Sobre a vinculação da competência fiscalizatória prioritária à definição do órgão licenciador, a lei dispõe o seguinte:
“Art. 7º. São ações administrativas da União: (…) XIII – exercer o controle e fiscalizar as atividades e empreendimentos cuja atribuição para licenciar ou autorizar, ambientalmente, for cometida à União; (…)
Art. 8º. São ações administrativas dos Estados: (…) XIII – exercer o controle e fiscalizar as atividades e empreendimentos cuja atribuição para licenciar ou autorizar, ambientalmente, for cometida aos Estados; (…)
Art. 9º. São ações administrativas dos Municípios: (…) XIII – exercer o controle e fiscalizar as atividades e empreendimentos cuja atribuição para licenciar ou autorizar, ambientalmente, for cometida ao Município; (…)
Art. 17. Compete ao órgão responsável pelo licenciamento ou autorização, conforme o caso, de um empreendimento ou atividade, lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo para a apuração de infrações à legislação ambiental cometidas pelo empreendimento ou atividade licenciada ou autorizada” (…).
[3] Plenário. Julgamento em 16.12.2022. DJE 17.03.2023.
[4] É o caso das ADIs 5.312/TO, 6.650/SC e 6.288/CE. A respeito do assunto: FARIAS, Talden; COSTA, Mateus Stallivieri da; ANDRADE, Jaqueline de. Licenciamento ambiental em pauta no STF: análise sobre dispensa e inexigibilidade. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jul-31/opiniao-licenciamento-ambiental-dispensa-inexigibilidade/. Acesso em: 9.set.2024.
[5] AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUCIONAL E AMBIENTAL. FEDERALISMO E RESPEITO ÀS REGRAS DE DISTRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA LEGISLATIVA. LEI ESTADUAL QUE DISPENSA ATIVIDADES AGROSSILVIPASTORIS DO PRÉVIO LICENCIAMENTO AMBIENTAL. INVASÃO DA COMPETÊNCIA DA UNIÃO PARA EDITAR NORMAS GERAIS SOBRE PROTEÇÃO AMBIENTAL. DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO E PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE. (…) 3. O desenvolvimento de atividades agrossilvipastoris pode acarretar uma relevante intervenção sobre o meio ambiente, pelo que não se justifica a flexibilização dos instrumentos de proteção ambiental, sem que haja um controle e fiscalização prévios da atividade (STF, ADI 5.312, Rel. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, julgado em 25/10/2018, DJe 11/02/2019).
• Talden Farias
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é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE, pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.
Fonte: https://www.conjur.com.br/