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Desde a década de 1970, comunidades camponesas assistem atônitas à ocupação e destruição da biodiversidade do cerrado nas chapadas do Alto Jequitinhonha para a implementação massiva da monocultura do eucalipto
O Vale do Jequitinhonha, com extensa área semiárida no nordeste de Minas Gerais, se divide em três territórios: Alto, Médio e Baixo, que compreendem diferentes biomas e estruturas fundiárias. No Alto Vale a paisagem é marcada pela presença de planaltos, localmente designados como chapadas, terras altas e planas, intermediadas por grotas, profundos vales originalmente com presença de água e terra fértil. Historicamente, nas grotas, famílias lavradoras estabeleceram, a partir da fertilidade e umidade da terra, seus sistemas de produção, suas comunidades, seus modos de vida. As chapadas, importantes para a recarga dos mananciais, eram áreas geridas e usadas em comum entre as famílias do seu entorno, locais de coleta de frutos e madeira, pesca, pastagem e outros.
A partir dos anos de 1970 o Alto Jequitinhonha foi alvo de incentivos fiscais públicos para implantar monoculturas de eucalipto. Propostos pelo governo militar como forma de “ocupar” a região e “integrá-la” como fornecedora de matéria-prima ao complexo siderúrgico, a atividade foi pensada como assunto de segurança nacional: tornou-se produtora do principal insumo – carvão vegetal – para produção do ferro gusa, uma prioridade estratégica na industrialização brasileira. Nessa conjuntura, o governo de Minas Gerais, por meio de uma empresa estatal denominada Acesita, se apropriou de grande parte das chapadas comuns, tomando terras de inúmeras comunidades camponesas; marcando profunda e negativamente a história da região e seu povo. Essa empresa, que em 1992 foi privatizada, posteriormente passou ao grupo Arcelor Mittal, o qual atende atualmente pelo nome de Aperam Bioenergia.
Desde a década de 1970, comunidades camponesas assistiram atônitas à ocupação e destruição da biodiversidade do Cerrado nas chapadas do Alto Jequitinhonha para a implementação massiva da monocultura do eucalipto, aumentando a evapotranspiração por meio de uma planta exótica nativa da Oceania. São mais de 250 mil hectares com monoculturas de eucaliptos, dos quais 126 mil pertencem à Aperam Bioenergia. Estudos apontaram que o monocultivo de eucalipto evapotranspira por metro quadrado cerca de 6 litros de água/dia, enquanto as plantas nativas do Cerrado evapotranspiram aproximadamente 2,5 litros/dia e, no período mais seco, reduzem esse índice para 1,5 litros de água/dia (Driessen 1984).
Farley et al. (2005) revelaram que monocultivos de eucalipto causam um maior impacto que outras espécies: quando uma vegetação nativa de pastagem é substituída por monocultivo de eucalipto ocorre uma redução de 44% das vazões do rio na região. Para os autores é preciso aumentar a preocupação para áreas semiáridas. Nesse clima, as microbacias que apresentam precipitação média anual de 30% do escoamento base têm sua vazão reduzida pela metade ao serem submetidas à monocultura de eucalipto e as microbacias que apresentam precipitação média anual de menos de 10% do escoamento base secam por causa da substituição da vegetação nativa.
Em meados dos anos 1990, efeitos drásticos motivados pelo monocultivo de eucalipto começam a emergir, com secamento de nascentes e córregos afetando o abastecimento humano no rural e urbano. Cidades como Turmalina e Chapada do Norte viram os ribeirões que as abasteciam se tornarem intermitentes e precisaram ser abastecidas por água conduzida por caminhões pipa.
Floresta de eucaliptos (Arjun Valiya Parambathu/Unsplash)
Lideranças de comunidades rurais afetadas pela monocultura se uniram para debater o tema da falta de água, refletiram sobre essa realidade posta unilateral e verticalmente, e em sua organização instituíram, em 2015, uma Rede de Parcerias – coletivo que envolve representantes de comunidades rurais, Sindicatos de Trabalhadores Rurais, o Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV), entre outros. A Rede vem ao longo dos anos se reunindo, buscando alternativas que indiquem saídas para minimizar a força negativa dos impactos que comprometem a condição socioprodutiva das populações locais e contribuem fortemente para inviabilizar a vida no campo. Essa iniciativa mobilizou atores engajados na causa socioambiental no Alto Jequitinhonha, pelo país e na comunidade internacional, urdindo organizações na Campanha Internacional pela Biodiversidade e contra a Monocultura do Eucalipto.
Depois de experimentar ações mitigadoras no âmbito das comunidades rurais, a Rede de Parceiros entendeu, nesse processo, que não bastava interferir no ambiente de grotas, já que no Alto Jequitinhonha o potencial hídrico se sustenta naturalmente nas áreas de recarga das chapadas e de seus mananciais. Foi então que, entre 2017 e 2021, a parceria entre o Núcleo de Pesquisa e Apoio à Agricultura Familiar Justino Obers (PPJ) formado por estudantes e professores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais e pelo CAV, pesquisou impactos da monocultura do eucalipto no estudo de caso: “Comunidades rurais e água na Microbacia Hidrográfica do Rio Fanado, Turmalina, MG”.
As informações produzidas pelas universidades e debatidas pelo conjunto de atores e comunidades afetadas e organismos públicos trouxeram à tona impactos das intervenções do monocultivo de eucalipto na Chapada das Veredas nas últimas cinco décadas. Evidenciou-se um conjunto de dilemas e desafios que precisaram ser enfrentados ao curto, médio e longo prazo.
Um primeiro ponto fundamental é o secamento de fontes naturais de água, apontado pelo estudo como efeito da monocultura sobre os mananciais. O balanço hídrico da Chapada das Veredas revelou que, nas áreas com vegetação nativa de Cerrado, 525,8 mm da precipitação recarregavam o lençol subterrâneo anualmente; já nas áreas com monocultura de eucalipto apenas 308,5 mm infiltravam para recarga subterrânea. Isso significa que, em cada metro quadrado plantado com eucalipto, aproximadamente 217,3 mm/ano deixam de infiltrar no solo e abastecer o lençol freático. Isso se deve à alta evapotranspiração, incluindo a evaporação direta, a transpiração e a interceptação dos eucaliptais. Na Chapada das Veredas, cuja área de monocultura era de 14.674 hectares, em um ano a diminuição da recarga hídrica subterrânea era de aproximadamente 31.886.602 m3/ano, ou seja, 31.886.602.000 litros por ano que deixavam de alimentar as nascentes.
O secamento e morte dos mananciais sob efeito das monoculturas de eucalipto conduziram a uma escassez estrutural de água na microbacia do Rio Fanado e ocasionaram um conjunto de desigualdades de acesso às fontes naturais. E o que significa isso?
Um problema muito grande para as comunidades rurais e para as populações locais. Pois mesmo que chova muito bem no ano as nascentes não vão voltar a correr e a vazão do Rio Fanado não vai melhorar – ela vai aumentar só no período da chuva e das enchentes. Recuperar nascentes e, consequentemente, aumentar a vazão do rio significa décadas e décadas de ações de conservação e recuperação ambiental. Contudo, a escassez estrutural traz consigo processos profundos de desigualdade de acesso a água. A pesquisa indicou que há famílias que têm disponível apenas 43 litros de água por pessoa por dia, em detrimento daquelas que podem conseguir mais água (até 200 litros por pessoa dia) por possuírem melhores condições de renda e não estarem tão dependentes do atendimento do poder público por meio de caminhão pipa ou outros meios que costumam ser muito precários. Então, a escassez traz consigo um acesso desigual às fontes que é mediado, principalmente, pelo critério de renda: menos renda, menos água; mais renda, mais água. O que é muito perverso para se pensar possibilidades de desenvolvimento local. Pois enquanto as comunidades rurais limítrofes à Chapada das Veredas têm acesso restrito à água para consumo doméstico e um forte estrangulamento da produção agrícola familiar em razão da escassez, a empresa que ocupa o território da chapada detém o monopólio de acesso e uso da água que garante a produtividade em seus monocultivos. Assim, a totalidade dos custos de programas públicos de abastecimento hídrico recai sobre a sociedade, já que os impostos arrecadados pelas atividades produtivas causadoras dos danos ambientais e hídricos não conseguem reparar os danos ambientais. Anualmente os custos hídricos, sociais e econômicos são colocados para as comunidades rurais e para a população do município de Turmalina, que, afinal, pagam a conta da destruição de mananciais causada pela empresa com o aval dos governos federal e estadual.
Conforme o estudo “Comunidades rurais e água na Microbacia Hidrográfica do Rio Fanado, Turmalina, MG”, o monocultivo de responsabilidade da Aperam Bioenergia – o qual é, diga-se de passagem, certificado pelo Forest Stewardship Council (FSC) – tem provocado ao longo de quase cinco décadas impactos de profundos para agroambientes do Cerrado do Alto Jequitinhonha e para as populações tradicionais que os habitam.
Ainda em se tratando do acesso à água, não é só a escassez que atormenta a vida dos povos e comunidades do Alto Jequitinhonha, mas também a evidência de contaminação por agrotóxico. A monocultura do eucalipto na região do Vale do Jequitinhonha faz uso de agrotóxicos desde a sua introdução nos anos 1970. O uso contínuo de pesticidas químicos nas chapadas, áreas de recarga de aquíferos e nascentes do Alto Jequitinhonha representa um risco real de contaminação da água destinada ao uso humano e de animais em comunidades que vivem em áreas próximas às plantações de eucaliptos. Entre os agrotóxicos declarados pela Aperam Bioenergia destacam-se dois princípios ativos: o glyphosate e o sulfluramid. A empresa, de acordo com o relatório FSC, afirmou utilizar 55.160 kg de produtos com glifosato em 14.119 ha por ano, e 76.284 kg de produtos sulfluramídicos em 41.231 ha por ano. Esses volumes representam enorme potencial de contaminação para as áreas monocultivadas com eucaliptais e para as comunidades rurais no entorno. Outro agrotóxico amplamente utilizado foi o Aldrin, um produto da classe dos organoclorados, facilmente absorvido pela pele e classificado pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC) como provável cancerígeno para o ser humano e animais. Desde que ocorreu a proibição do uso do Aldrin, na década de 1980, o correto seria destinar os restos para um local adequado conforme previa a legislação, porém, ao que tudo indica ocorreu o aterramento do produto, causando contaminação do solo, da água e consequentemente das pessoas e animais que ficaram expostos ao produto. Acidentalmente um aterro foi descoberto por moradores de uma comunidade no ano de 2017, no município de Itamarandiba (MG). Detalhes do ocorrido podem ser acessados na reportagem Aterro de agrotóxico proibido contaminou solo e água por quatro décadas em Minas Gerais, diz MP, da Repórter Brasil.
Esse contexto motivou a Rede de Parceiros, assessorada pela empresa Bureau Veritas, a participar do processo da certificação FSC da Aperam Bioenergia, que aconteceu entre 2020 e 2022.
Observou-se, no entanto, que todo o conjunto de documentos reunidos pela Rede de Parcerias – que no entender das comunidades afetadas constituem provas concretas dos danos que elas têm sofrido nas últimas décadas – foi desconsiderado pela Bureau Veritas no processo de certificação, que não proporcionou maior participação dos atores locais nem incluiu populações impactadas.
Em novembro de 2020, quarenta organizações de três países (Brasil, Itália e Suíça), assinaram uma carta entregue à Bureau Veritas denunciando práticas danosas ao meio ambiente e às condições de vida das populações rurais tradicionais de comunidades do Alto Jequitinhonha. Anexas a essa carta, foram incluídas diversas evidências de tais práticas, como os resultados do próprio estudo acima citado, imagens, entre outras. Já em abril de 2022, um manifesto de um conjunto de organizações internacionais foi encaminhado ao FSC Brasil e FSC Internacional; desta vez, sem nenhuma resposta.
Contudo, o conjunto de atores envolvido nessa iniciativa de contraposição aos efeitos da monocultura do eucalipto na vida das populações camponesas e de mananciais locais permanece atuante e esperançoso por avanços na busca da sensibilização para ações concretas e coerentes das autoridades competentes e, consequentemente, da própria empresa, Aperan Bioenergia.
Organizações e comunidades envolvidas na Campanha Internacional pela Biodiversidade e contra a Monocultura do Eucalipto acreditam que é um momento muito importante para se refletir se o bem comum é resguardado ao se destinar, para um único uso monopolizado por uma única empresa, uma chapada que historicamente tem tanta serventia para as comunidades rurais e urbanas de seu entorno, inclusive, para o seu abastecimento hídrico, essencial à sobrevivência e desenvolvimento.
Fonte: https:diplomatique.org.br