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Quando se fala em matéria-prima para construção civil, o brasileiro pensa rapidamente na alvenaria. Mais comum, com mão de obra mais acessível e dotada de facilidade na aquisição de materiais. Mas o setor industrial vem trabalhando fortemente na mudança do mindset deste mercado para expandir seus horizontes, agregando novos materiais, técnicas construtivas e na forma como a construção civil acontece no canteiro de obras, unindo a indústria a este processo. É aí que entram os sistemas construtivos em madeira, como a madeira engenheirada, material que passa por processos industriais para se tornar passível de compor a estrutura de construções dos mais diversos tipos e que vem, aos poucos, vencendo barreiras culturais, legais e tributárias para ganhar mais espaço entre os consumidores brasileiros.
O berço dessa iniciativa é o Paraná. Recentemente, a Federação das Indústrias do Estado (Fiep) reuniu os principais atores do mercado de madeira para construção em um workshop em Curitiba para discutir os gaps do setor e suas potencialidades. Afinal, é no Estado que alguns dos principais players do mercado da madeira, inclusive para a construção civil, estão instalados. “Temos um bom maciço florestal, uma indústria madeireira bem verticalizada e somos líderes nacionais em produção de vários produtos madeireiros”, resume o vice-presidente da Fiep e superintendente da Associação Brasileira da Indústria de Madeira Processada Mecanicamente (Abimci), Paulo Pupo.
O que as empresas que produzem, beneficiam, constroem e incorporam querem mostrar é que a madeira é uma alternativa viável e economicamente atraente para fomentar o mercado da construção civil no Brasil. “Hoje temos (a construção civil) uma participação no PIB Brasil de aproximadamente a metade do que já fomos. E como se recupera esse espaço? Pensando fora da caixinha, em como você torna o nosso produto mais interessante e acessível ao nosso cliente. A construção em madeira é um grande exemplo disso, porque é um novo mercado que se abre, lastreado na sustentabilidade e no aumento da produtividade, porque o que estamos propondo não é algo artesanal, mas com processo industrializado e dentro de normas técnicas”, explica o presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), José Carlos Martins.
As construções que usam madeira engenheirada e woodframe (veja abaixo a diferença entre ambos) são mais limpas, rápidas, leves, têm bom custo-benefício e agregam sustentabilidade, concordam os especialistas do setor. Mas ainda esbarram em desafios, como tributação elevada e regulamentação no sentido de escalar a produção. Mesmo assim, eles são unânimes em afirmar que vão superar os entraves, ganhar espaço e altura também: o desenvolvimento das técnicas construtivas caminha para edifícios cada vez mais altos feitos integralmente em madeira, como já acontece em países da Europa e nos Estados Unidos.
“Na Suécia, por exemplo, 99% do mercado residencial é de construções em madeira e nos EUA, 80%. Isso se repete em outros países, como Alemanha, Finlândia, com percentuais um pouco menores, mas também bastante significativos”, menciona José Marcio Fernandes, sócio-fundador da Tecverde, maiore empresas do país de construções em madeira, localizada em Araucária, região metropolitana de Curitiba.
Conforme esse mercado se popularizar, ele tende a ficar mais interessante e com melhor custo-benefício para construção de prédios de mais pavimentos. “Temos uma norma de tecnologias inovadoras que nos permite construir até cinco pavimentos, mas em outros países é possível desconstruir até oito, dez pavimentos e nós temos tecnologias utilizando a madeira que permitem construir edifícios muito mais altos ainda”, explica Fernandes.
Ele se refere à técnica CLT (do inglês Cross Laminated Timber, em tradução livre, madeira laminada cruzada), que consiste na junção de camadas de tábuas de forma perpendicular, o que confere mais rigidez à estrutura e permite formar lajes, paredes e coberturas. “Nesse caso é possível construir 20, 25 pavimentos. Não tem muito limite. Por isso a madeira é um material de futuro para construção civil”, acredita o empresário.
Experiências que vêm de longe
De fato, impressiona o que traz a experiência da Suécia. No workshop promovido pela Fiep, que abriu uma exposição internacional sobre o tema, o arquiteto Robert Schmitz, da White Arkitekter, mostrou um pouco do que a madeira engenheirada é capaz em construções. “Nossas tecnologias evoluíram nos últimos 30 anos dando aplicações possíveis para incrementar as construções em muitos aspectos”, garante.
Um deles é tornar possível o projeto de neutralizar as emissões de todas as construções do país até 2030, tendo como base matéria-prima local (70% do território sueco é coberto por florestas). Outro é a construção de edifícios surpreendentemente altos feitos somente em madeira. É o caso do Sara Kulturhus, um dos edifícios de madeira mais altos do mundo, com 20 andares e 75 metros de altura e que abriga um centro cultural e hotel, localizado na cidade de Skelleftea.
Na esteira dessa evolução, vem a exportação das tecnologias construtivas para países com alto potencial de desenvolvimento de mercado, como o Brasil. Além da tecnologia CLT, a madeira engenheirada agrega técnicas como o glulam (glued laminated timber, ou madeira laminada colada), também para uso estrutural, mas nas funções de pilares, vigas e treliças. Ambas são os carros-chefes da Urbem, fábrica de Almirante Tamandaré, também na região de Curitiba, que lidera o segmento de madeira engenheirada em larga escala no Brasil.
“Estamos no momento certo, em que o mercado procura alternativas pra construção civil com apelo ESG, e que também casa com a oportunidade de ter sistemas construtivos industrializados que facilitam e agilizam a construção civil, diminuindo tempo de montagem, evitando desperdícios no canteiro de obras, aproveitando o aspecto da madeira para a arquitetura e o design, já que é um material que proporciona conforto acústico, térmico e liberdade de criação”, explica Patrick Reydams, COO da Urbem.
Entre os sistemas construtivos em madeira está também o woodframe, já um pouco mais popularizado no Brasil. A diferença está na versatilidade para o uso estrutural. Enquanto a madeira engenheirada usa técnicas industriais que trabalham peças maciças de madeira colada, podendo servir como base estrutural para construções mais parrudas, o woodframe consiste em réguas individualizadas, revestidas interna e externamente por placas cimentícias ou de gesso. “Tem-se então uma parede oca com ripas de madeira que podem ter algum tipo de isolamento no meio delas”, explica Reydams.
Ambos os sistemas são complementares, na visão do empresário. “É natural que os dois trabalhem juntos. Enquanto se faz a parte estrutural em CLT e glulam, a parte de fechamento, revestimento e as divisórias internas podem ser feitas em woodframe ou outro material. Ficaria muito caro fazer uma parede de CLT só para ser uma divisória, por exemplo. E com isso o woodframe vai poder subir mais andares também usando a madeira engenheirada como estrutura.”
Ganho em escala para viabilizar maior alcance de mercado
Ressalvadas as devidas diferenças entre países europeus e o Brasil, o único impeditivo que interfere na popularização dessas construções por todo o país é a demanda, ainda discreta para viabilizar a logística. Enquanto as principais fábricas se concentram no sul, com alguns players produzindo em escala menor no sudeste, enviar material para o nordeste, por exemplo, encarece o processo. A Tecverde tem como principais mercados consumidores São Paulo e Paraná, com obras também no Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Rio de Janeiro, em modelos que variam de mansões nos condomínios Alphaville até moradias populares de programas habitacionais viabilizados pelo governo.
“Essas habitações mostraram muito sucesso em seu uso, no pós-habitação, sem apresentar patologias, tanto que estão sendo financiadas pelos maiores bancos do país. Hoje conseguimos deixar uma casa pronta para tirar o Habite-se em um dia. Para um prédio de quatro pavimentos, a montagem acontece em seis dias. As paredes, lajes e elementos estruturais saem prontos da fábrica e nós apenas montamos no terreno, como se fosse um lego”, explica José Marcio Fernandes.
O caro, portanto, é levar da fábrica para o canteiro de obras. “O que a gente precisa pra viabilizar isso hoje é ter projetos em larga escala”, ressalta. As questões climáticas, tão variadas no Brasil, não são impeditivos. “Já homologamos nosso sistema construtivo sem grandes dificuldades em todas as oito regiões bioclimáticas do país. Temos casas construídas em regiões extremamente quentes e úmidas, como na floresta amazônica. E para regiões quentes (como nordeste, norte e oeste brasileiros) existe a vantagem do desempenho térmico, com uma habitação capaz de manter a temperatura muito mais estável, com economia em climatização”, exemplifica.
Não existem dados unificados sobre as construções que utilizam madeira engenheirada no Brasil, até por ser este um mercado incipiente. O que existe são os números das empresas. A Tecverde é a maior enquanto produtora e montadora. Se olharmos para os dados da construção civil como um todo, o Brasil constrói cerca de 800 mil habitações por ano. A Tecverde já produziu sete mil habitações, uma fatia que abocanha menos de 1% do mercado. “Claro que, se comparado a outras tecnologias, inovadoras, é um número significativo, mas ainda uma porcentual de mercado pequeno se comparado ao geral. Embora com potencial gigante para crescer”, afirma Fernandes, que em 2023 opera com a construção de 1,5 mil unidades habitacionais e estima um crescimento de 70% para 2024.
Neste ponto, o próximo entrave é vencer as questões tributárias. O impacto dos impostos sobre construções industrializadas chega a encarecer a obra em 15%. “E mesmo tendo toda essa barreira conseguimos ser competitivos; sem ela, com certeza essa tecnologia já estaria em outro patamar”, atribui o sócio da Tecverde. A competitividade passa pelo fato de as construções nessa modalidade demandarem menos tempo, menos mão de obra e menos equipamentos. A exemplo do que ocorre lá fora. “Na Áustria, Inglaterra e França já se investe em políticas públicas e também em novas fábricas. Hoje a tecnologia em madeira lá é mais barata que a construção tradicional em aço e concreto. O Brasil ainda não chegou lá, mas com o tempo deve chegar”, complementa Patrick Reydams.
Como fica a matéria-prima
Uma das vantagens brasileiras nessa corrida é a forte presença de florestas plantadas. Por isso, para os especialistas, no quesito matéria-prima o Brasil sai na frente de países como Canadá, Estados Unidos e Austrália, que já usam as tecnologias de sistemas construtivos em madeira em escala industrial há pelo menos 20 anos. “Mas eles têm uma dificuldade maior com matéria-prima pelo longo tempo de crescimento das árvores até o ponto de colheita. No nosso caso, temos as florestas com maior rendimento de crescimento e, consequentemente, um retorno maior e um custo mais baixo da matéria-prima”, explica o COO da Urbem.
Ele admite, no entanto, que o crescimento deste mercado vai impor mais uma pressão sobre as florestas plantadas, que já têm como grandes consumidoras as indústrias de papel e celulose, compensados e madeira serrada. “Não acho que isso será crítico no curto e médio prazo, mas se não houver políticas de incentivo e aumento de áreas plantadas nos próximos anos, isso pode impactar mais pra frente.”
O que não seria um problema sem solução, acredita Reydams. “O Brasil tem muita área ainda disponível para plantar floresta e que não depende de abertura. Há muitas áreas degradadas, de antigas pastagens ou de antigas áreas de agricultura que podem ser convertidas em florestas. E o plantio de floresta traz para a economia agrícola a questão das reservas legais, da certificação para o campo, enfim, um retorno mais consistente.”
Por Lígia Martoni
Fonte: Gazeta do Povo