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Terras públicas sem uso definido ocupam 25% da Amazônia brasileira. Com pouco monitoramento, áreas são suscetíveis à grilagem e ao desmatamentoO desmatamento na Amazônia disparou nos anos recentes. Segundo dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), órgão do governo federal que monitora a região, houve alta de 59,9% na derrubada de floresta de 2019 a 2022 em comparação aos quatro anos anteriores.
Grande parte desse desmatamento ocorre nas chamadas florestas não destinadas, áreas públicas que recebem menos proteção dos governos por ainda não terem uso definido. Apesar de serem importantes do ponto de vista ambiental e climático, essas florestas têm perdido espaço para a grilagem na Amazônia.
O Nexo explica o que são as florestas não destinadas, qual o alcance do desmatamento nessas áreas e o que explica o avanço sobre esses espaços. Mostra também as propostas feitas para reduzir a devastação e os desafios do governo federal para concretizá-las.
O que são essas florestas
Florestas públicas não destinadas são terras que são sob domínio do governo federal ou de algum governo estadual e ainda não receberam destinação para se consolidar como terra indígena, unidade de conservação ou outro tipo de área protegida, como reservas extrativistas, assentamentos, áreas quilombolas e outras áreas de conservação concedidas por prazo determinado à iniciativa privada.
Porções de florestas desse tipo estão em todos os biomas do Brasil. Na Amazônia, elas ocupam 560 mil km² — o que equivale a 25% da área da Amazônia brasileira, ou duas vezes a área de todo o estado de São Paulo. Estão espalhadas em diferentes estados da região.
Essas florestas têm papel fundamental para a biodiversidade na Amazônia e para o equilíbrio climático e hídrico na escala local, nacional e global. A Amazônia é responsável pela manutenção de grande parte das chuvas no país, incluindo nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul.
Segundo a Lei de Gestão de Florestas Públicas, sancionada pelo governo federal em 2006, essas florestas são patrimônio público e devem ser destinadas para conservação ou para outro tipo de área de uso sustentável. Essa destinação, porém, está atrasada.
Qual o alcance do desmatamento nessas áreas
Segundo dados do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) divulgados em 2022, as florestas públicas responderam por mais da metade (51%) da área desmatada na Amazônia desde 2019. Entre elas, as florestas não destinadas são a categoria mais devastada, concentrando 30% da área desmatada no bioma entre 2020 e 2021.
Apesar de terem domínio público, os assentamentos rurais também foram considerados como de uso privado na análise. Já o que o gráfico chama de áreas protegidas compreendem territórios como terras indígenas e unidades de conservação — que, assim como as florestas não destinadas, são públicos.
O desmatamento nas florestas não destinadas foi 85% maior entre 2019 e 2021 do que nos três anos anteriores. Essa foi uma tendência não só dessas áreas, mas de todas as terras públicas da Amazônia. Unidades de conservação, por exemplo, tiveram 64% de aumento no desmatamento, enquanto terras indígenas registraram 153%.
O que explica o desmatamento
O desmatamento em florestas não destinadas vem crescendo desde 2006, ano da sanção da Lei de Gestão de Florestas Públicas, mas se consolidou em 2014, com a regulamentação do CAR (Cadastro Ambiental Rural), segundo artigo das pesquisadoras Ane Alencar e Bibiana Alcântara Garrido, do Ipam, no Nexo Políticas Públicas.
O CAR é um cadastro obrigatório e autodeclaratório que funciona como uma espécie de radiografia ambiental das propriedades rurais. Considerado um dos pilares do novo Código Florestal, ele permite ao poder público conhecer essas propriedades e regularizá-las.
Segundo ambientalistas, desde que surgiu, o CAR passou a ser usado a serviço de um problema antigo da Amazônia: a grilagem de terras. Grileiros invadem florestas públicas e, de forma fraudulenta, cadastram a área no CAR como se fosse sua propriedade.
Dados de 2020 do Ipam mostram que quase 19 mil km² de florestas públicas não destinadas pelo poder público foram declaradas ilegalmente como imóveis rurais no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural. Outros 15,2 mil km² de outros tipos de terras públicas não destinadas (áreas que não são florestas, por já terem sido desmatadas ou degradadas) foram declaradas como propriedade.
A grilagem só conseguiu crescer nessas áreas por causa da ausência de fiscalização do poder público. Sem monitoramento, as florestas não destinadas se transformaram em “terra de ninguém”. Esse quadro piorou no governo de Jair Bolsonaro, que enfraqueceu a atuação de órgãos ambientais e empoderou invasores.
O que fazer para diminuir os índices
Apesar de o desmatamento não se restringir às florestas não destinadas e também atingir terras indígenas e unidades de conservação, dar destinação a áreas que ainda não têm uso definido cria obstáculos para a grilagem de terras, o que leva à redução do desmatamento.
Entre 2004 e 2012, quando o governo federal criou e aprovou o chamado PPCDam (Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal), a criação de novas áreas protegidas inviabilizou a prática de grileiros de invadir uma terra e dizer que é sua — afinal, é difícil regularizar ou vender uma área que tem uma governança clara, como uma unidade de conservação, que é gerida pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade).
1%
foi o percentual de perda florestal em terras indígenas na Amazônia nas últimas três décadas, segundo dados de 2022 do projeto MapBiomas; apesar de o desmate nessas áreas ter aumentado, elas ainda registram os menores índices da região
Junto com a criação de áreas protegidas, o PPCDam fortaleceu ações como o monitoramento da Amazônia via satélite e a fiscalização ambiental sob a liderança de órgãos como o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). De 2004 a 2012, o desmatamento na região caiu 82%.
Indígena da etnia Kayapó faz vigilância da Terra Indígena Menkragnoti (PA) contra invasores
Essas práticas diminuíram depois de 2012, nos governos de Dilma Rousseff e Michel Temer, que criaram menos terras indígenas e unidades de conservação que os governos anteriores. Com Bolsonaro, que se aproximou de grupos predatórios da Amazônia (como o garimpo e alas radicais do agronegócio) e defendia a flexibilização das normas socioambientais, a demarcação de terras indígenas foi a zero.
Ane Alencar disse ao Nexo que é preciso vontade política para dar destinação a essas florestas. Fora isso, é necessário aparato institucional, que nem sempre está à disposição. O processo para criar terras indígenas e unidades de conservação é longo e demanda, estudos, gestores, infraestrutura e verba. “Não é só criar no papel”, disse.
Quais são os planos do novo governo
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva diz desde a campanha eleitoral para presidente que pretende zerar o desmatamento na Amazônia. Em discurso na COP27, conferência do clima das Nações Unidas no Egito, em 2022, o petista disse que iria fortalecer os órgãos de fiscalização e punir grupos que cometem crimes ambientais para reverter a tendência de devastação dos últimos anos.
O governo também retomou o PPCDam e criou o Ministério dos Povos Indígenas, dando sinais positivos para a volta da demarcação desse tipo de terra. Segundo informações da coluna de Guilherme Amado no portal Metrópoles, a documentação para a demarcação de 13 territórios que estão com o processo paralisado está pronta, embora a medida ainda não tenha sido tomada.
Guardiões da Terra da etnia Munduruku, na Amazônia
Para Ane Alencar, a vontade política para realizar essas medidas precisará ir além dos órgãos ambientais tradicionais, como o Ministério do Meio Ambiente e da Mudança do Clima. “Tem que mobilizar [outros] setores políticos e institucionais para que essas áreas sejam criadas”, disse, pois há diversos interesses envolvidos (às vezes, conflitantes) na criação de uma nova área protegida.
“E que fique claro que, uma vez criadas, não pode haver possibilidade de comercialização dessas terras”, acrescentou. Para isso, segundo ela, é importante que o governo combata invasões de terras indígenas e unidades de conservação.
Mariana Vick
Fonte: Nexo Jornal